domingo, 28 de junho de 2009

migalhas, apenas


Belo, muito belo. Mais um poema pra lista do "Li, gostei e postei":

Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro
diante da página impressa,
e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel
de dentro da copa do desespero de amor.
Acredito, do fundo das minhas células,
que uma amizade sincera “é o único modo de sair da solidão
que um espírito tem no corpo”.
Sim, eu acredito no corpo.

Por tudo isso é que eu me perco
em coisas que, nos outros,
são migalhas.
Por isso navego, sóbria, de olho seco,
as madrugadas.
Por isso ando pisando em brasas
até sobre as folhas de relva,
na trilha mais incerta e mais sozinha.

Mas se me perguntarem o que é um poeta
(Eu daria tudo o que era meu por nada),
eu digo.
O poeta é uma deformidade.

Claudia Roquette-Pinto

Rifa-se um coração

Clarice Lispector

“Rifa-se um coração
Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste
em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração que na realidade está um
pouco usado, meio calejado, muito machucado
e que teima em alimentar sonhos e, cultivar ilusões.
Um pouco inconseqüente que nunca desiste
de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração
que acha que Tim Maia
estava certo quando escreveu…
“…não quero dinheiro, eu quero amor sincero,
é isso que eu espero…”.
Um idealista…Um verdadeiro sonhador…
Rifa-se um coração que nunca aprende.
Que não endurece, e mantém sempre viva a
esperança de ser feliz, sendo simples e natural.
Um coração insensato que comanda o racional
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando
relações e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste em cometer
sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe.
Perde o juízo por completo em nome
de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional
que abre sorrisos tão largos que quase dá
pra engolir as orelhas, mas que
também arranca lágrimas
e faz murchar o rosto.
Um coração para ser alugado,
ou mesmo utilizado
por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado indicado apenas para
quem quer viver intensamente
contra indicado para os que apenas pretendem
passar pela vida matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente
que se mostra sem armaduras
e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer
para São Pedro na hora da prestação de contas:
“O Senhor pode conferir. Eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal
quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e,
se recusa a envelhecer”
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por
outro que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate
tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda
não foi adotado, provavelmente, por se recusar
a cultivar ares selvagens ou racionais,
por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio,
sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos que,
mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar,
mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence
seu usuário a publicar seus segredos
e a ter a petulância de se aventurar como poeta.”

quinta-feira, 11 de junho de 2009

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Peter Blake

'An Alphabet'
Peter Blake é autor da capa do Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band

David Smith

The Letter-1950
Um dos poucos exemplos de escultura que remete a algum tipo de escrita.Outros são os trabalhos do Matias Goritz.

Augusto de campos

Psiu
Todos os olhos-Capa do LP de Tom Zé

Amir Brito

Pollock

gestos caligráficos

Rodrigo Linhares

Diários

Fiona Banner

The Bastard Punctuation, 2006-07
Os sinais de pontuação são detalhes ampliados de desenhos de aviões (trem de pouso, turbinas, asas).

Al Hansen

beuys_breast

hersey venus,gold hersey wruppers,1988
mama vesuvia mia-1988
Artista ligado ao grupo Fluxus . A série de "vênus" foi feita com embalagem de chocolate.

Artes visuais*


Sérgio Niculitcheff,artista paulista,série Santo conhecimento

sexta-feira, 5 de junho de 2009

não levantes as persianas, querido
para que a luz não penetre até nós
e o dia não destrua os sonhos
aninha-te em silêncio junto a mim

para que o sol não ouça, não note
o tempo como nos perdemos em beijos
e talvez passe sem nos ver o velho predador
que sempre transforma tudo em poeiras

mostre-me os teus pensamentos só com toques
só com mordiscos dos teus desejos
e se alguma vez quiseres gritar

lembras-te que tudo ao nosso redor espreita
para enrugar a pele, para que o fogo arrefece
na cinza e o sangue que lambes se endurece.


Traduçäo: Raul Ferreira
tenho medo de fazer amor contigo, sabes
não por medo da morte
da destruição, da terra molhada, ou
das longas separações, sentes demasiado pouco

demasiado rápido cortas a ferida, dizes
pensamento vazio e derrubas tudo
em frente de ti, como um furacão levas tudo
alheio e frio, como a vida

sinto medo quando ando pela cidade
que caio, de desmoronar-me ao nada
que a tua pressão me comprima contra o chão

que o rio não desàgua, o sol cai,
a cabeça não arrebenta, os sonhos não morrem,
o medo é grande, como o mundo.


Traduçäo: Jasmina Markič
Desenha para mim
o que nos dois não podemos fazer
desenha os nossos corpos quentes
que se penetram, que se aspiram
os nossos lábios que se calam,
palavras sórdidas do esquecimento
talvez deste modo saberás
como me desejas
o quê? outra vez esse medo?
e tu traças linhas sobre linhas
deixando contornos de terra deserta
sem vida, uma só superfície
tranquilo deito-me sobre ti
e tento absorver-te.


Traduçäo: Luís Filipe Sarmento
numa noite profunda, quando nem sabes,
me rastejo ao quarto
em silêncio me proximo
sob a luz da vela, observo a tua face
como um feiticeiro
coloco-me as mãos
por cima de ti
quando nem sabes, nem sentes,
quando nem podes me empurar,
deito-me, engostando-me em ti,
suavemente para não te acordar
nesses momentos, penso ditosamente,
que ainda não há perguntas, nem dúvidas
como o rio serpenteamos através do tempo
embaraçados, na profundidade
há ainda peixes, e nas poças
umas mãos, uma boca bebem com paixão
lenta, sériamente, como um ritual.


Tradução: Jasmina Markič
desejo ainda mais e mais beijos, as convulsões
dos corpos atados, caminhemos ainda mais devagar
através do bosque, sonhando
que tudo é de outra maneira
nos matizes do tilintar das imagens que criamos
- de madrugada tive pesadelos, sobre a força,
sobre a violência, sobre a renúncia da vida.
levantei-me, aproximei-me aturdido por facas
olhei-as demoradamente, vazio, espremido
depois sentei-me, pensava no irreal
quis-me afundar ainda mais e mais
na eterna delícia da entrega, na pele
no olhar cálido dos olhos, na carícia
rasguei uma longa lista de acessórios
para o assalto, para o combate, para a defesa
vertia àgua e bebia-a, lentamente
longamente, como daqui para lá.


Tradução: Luís Filipe Sarmento
A principal preocupação da poesia de Brane Mozetič é o corpo em diferentes posiçoes, em situações limítrofes, torturado e compungido, frágil e vulnerável, exposto às formas extremadas de entrega ao outro. A poesia leva o erotismo ao corpo, mas não se detém na nudeza, talha na profundidade, corta até o sangue e gira ao redor do paradoxo da entrega simultânea com a dominação; assim a poesia não nasce da entrega estática e da exigência intransigente de tudo, o que produz uma impressão provocante e audaz a causa da escrita desenfreada do amor homossexual, doce e proibido.

O Poema Frio


Sim, eu sei...
Mas meu silêncio
é fruto dos dias de solidão.
Solidão que escolhi,
e que, grande companheira
me permitiu olhar os dias
de maneira sutil e generosa.
Me fez ver os homens
e seus rebanhos sem fim
com certa desconfiança.
Sim, eu sei...
Recluso em meio à multidão,
espalhei curiosidade e medo.
Mas é tudo tão simples...
Eu só queria ficar sozinho!
Mas agora vem você
que se impõe e se instala
no meio da sala
reservada às canções
e aos devaneios
deste verão chuvoso.
E agora menina?
O que vamos fazer com isso?
Dar ao mundo um início,
e costas ao precipício?
Isto não é um poema de amor.
Esta não é uma canção de paixão.
É só a minha forma solitária
de dizer que já sou teu.

Anderson Julio Lobone

terça-feira, 2 de junho de 2009

Gato


Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Fernando Pessoa
janeiro de 1931