domingo, 19 de julho de 2009

A palavra



A palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.
Antonio Ramos Rosa

quinta-feira, 2 de julho de 2009










Em 1611, Shakespeare escreve sua última peça- A Tempestade.
Próspero, duque de Milão, é banido de seu reino por seu irmão e opositores, que o atraiçoam e o colocam num barco sem remos ou rumo.
Deixado a deriva, para morrer ‘a mingua, Próspero e sua filha pequena sobrevivem, chegando a uma ilha isolada e totalmente inabitada, distante de tudo, povoada apenas por espíritos e é apenas com eles que passam a conviver daí em diante.Próspero dedica-se, por muitos anos, a controlar e manter sob suas ordens estes espíritos, banido num mundo desumanizado, exceção feita à sua filha, a pequena Miranda, que trata de educar com esmero. Dentre os espíritos encontram-se Ariel, que representa o que há de melhor na natureza humana e também Caliban, o espírito bruto e incapaz de aprender e experienciar, voraz, ligado apenas a seus próprios instintos descontrolados.
Muitos anos depois, um naufrágio traz à ilha seus opositores e a vingança se torna possível. Miranda encontra os náufragos e, sem contato prévio com outros seres humanos, maravilha-se com este “admirável mundo novo” que se descortina diante dela, apaixonando-se por um homem do grupo.Dentre os náufragos também está Gonzalo, homem justo e bondoso, que dera ao pai e à filha, às escondidas, provisões, roupas, livros, enfim, objetos que lhes permitiram sobreviver na ilha.
Através do olhar de Gonzalo e de Miranda, Próspero reencontra sua humanidade, abdicando da magia e de viver na ilha solitária, liberta os espíritos, e decide retornar ao convívio dos homens.
Eis o que diz Próspero ao tomar essa decisão:
"Meus olhos, só pela visão dos seus,
Pingam de amor. O encanto se dissolve;
E como a aurora surpreende a noite
Derretendo o negror, os seus sentidos
Renascem e começam a banir
A névoa de ignorância que ora encobre
A razão clara
. "
(W.S.- A Tempestade)
Gostaria de acreditar que ainda hoje, até mesmo os banidos, os atraiçoados e destituídos de sua humanidade podem ser resgatados desta condição, através de um encontro humano. Gostaria que a Miranda em mim não se desiludisse de vez.
Eu temo preferir manter-me numa ilha isolada, sob controle, abdicando do convívio do mundo em vez de retornar a ele e combater, do modo que posso, a usurpação, a desonestidade e a corrupção.

Enigma



Todo mundo tem, ao menos, um enigma na vida.
Segredos de si mesmo, moldados em tempos primevos, originados de uma questão, de perguntas sem resposta. A busca desta ou destas respostas se traduz numa canção tema, uma melodia singular, algumas vezes tocada fortissimo, outras vezes tocada docemente, de forma quase imperceptível.
Falo todo mundo porquê assim o sinto. Sim, tenho a pretensão de poder falar de mais do que de mim. Falar de mim, não me bastaria. Não sei falar de mim sem dirigir-me a ti, sem incluir-te em mim.Sei, que o que quer que eu fale, dará apenas uma imagem de mim - produzirá uma imagem de mim vista por ti.
Para formular-me em perguntas preciso de sinais e olhares e palavras, aquém e além de mim.
Estou e não estou só quando toca a música que dedilha meus enigmas - de fora dela vem outros sons e neles me desdobro em infinitas variações.